domingo, 13 de maio de 2018

Ensino Superior: (I) 45 anos de sistema binário



O subsistema politécnico do ensino superior foi introduzido em Portugal em 1973 pela reforma de Veiga Simão, atribuindo então os institutos politécnicos (e as escolas normais superiores) o grau de bacharel. A proposta inicial apresentada pelo então jovem ministro da educação de Marcelo Caetano em 1971, foi discutida na Assembleia Nacional nos primeiros meses de 1973 e publicada como Lei em 25 de julho desse ano. Esta lei de bases foi de imediato desenvolvida por um decreto que criou uma rede de novas universidades, de institutos politécnicos e de escolas normais superiores cobrindo todo o país. A nossa rede atual não difere muito daquele plano inicial apesar de os institutos politécnicos só terem de facto sido estabelecidos nos anos de 1980 no quadro do processo de recuperação económica após a intervenção do FMI em 1977 e 1983.
A massificação tardia do nosso ensino superior na década de 1985-95 permitiu aos institutos politécnicos estabelecerem-se e crescerem, havendo sempre estudantes qualquer que fosse a sua localização. As velhas e novas universidades eram incapazes (ou não queriam) crescer ao ritmo exigido por uma procura que seguia ao ritmo de perto de 15% ao ano. Por 1995, o ensino politécnico público tinha já 30% dos estudantes no ensino público, mas esta percentagem continuou a crescer até 2002. Em números absolutos, 2002 é também o último ano de crescimento continuado do número de estudantes nas universidades, um crescimento que vinha de pelo menos 1940, a uma taxa média anual de cerca de 6%. Com a viragem do milénio começam as dificuldades das instituições que subitamente se deram conta de que o crescimento perpétuo não estava garantido. Ao mesmo tempo o crescimento económico que se tinha mantido bastante firme ao longo do último meio século parava subitamente por 1995 sem que a população e os políticos se dessem realmente conta dessa nova realidade ou conseguissem corrigir o rumo. É o tempo do famoso pântano.
A criação de novas instituições de ensino superior era a ambição de todas as cidades de média dimensão e as decisões foram o resultado de negociações políticas e eleitorais nem sempre bem fundamentadas. Só com o início da competição pelos estudantes é que se notou a fragilidade de algumas decisões. Mas, os locais de menor pressão demográfica onde as instituições têm mais dificuldade em atrair estudantes são também aqueles onde elas são mais relevantes para o desenvolvimento regional. Ao encontrarem esta autojustificação, têm de se adaptar a uma nova missão, o que nem sempre tem sido fácil, nem é facilitado por um modelo de governança muito dependente da corporação docente.
Apesar do sucesso dos diplomados com licenciaturas politécnicas, não podemos deixar de notar uma certa incompreensão dos estudantes, das famílias e dos empregadores em relação à diferente missão e aos diferentes objetivos de universidades e institutos politécnicos. Ao longo destes mais de 30 anos, foram muito escassas as políticas de apoio à diferenciação, ficando o modelo universitário como objetivo único, como ideal de suposta excelência. Foi muito raro que os institutos politécnicos assumissem, por sua iniciativa, uma política de recrutamento e de formação do seu corpo docente consequente com esta desejada aproximação à universidade. Os seus estudantes também procuravam mais o saber fazer imediato do que uma base académica sólida e nem sempre imediatamente relevante para as profissões. Nem os bacharelatos de três anos poderiam dar um estímulo diferente sem defraudar completamente a aspiração de empregabilidade dos seus graduados.
Com a massificação do acesso ao ensino superior que levou a que tenhamos hoje 40% da coorte de 20 anos no ensino superior e sendo já seguro, com a criação dos TeSP (cursos de Técnico Superior Profissional), que os 50% serão atingidos em poucos anos, estamos obrigados a fazer uma reavaliação do posicionamento do serviço público de ensino superior. Quando, em 1979, foi criado o Estatuto da Carreira Docente do Ensino Universitário, o escalão docente máximo foi equiparado ao das carreiras judicial e militar. As universidades tinham cerca de 80 000 estudantes, um número que hoje quase quintuplicou, o que ajuda a explicar a perda progressiva de posição relativa dos docentes universitários. Esta realidade põe as nossas instituições muito longe da competição internacional por talentos que alguns países praticam e que pode generalizar-se associada à mobilidade crescente da população em geral. Na Irlanda, tornou-se possível, com autorização caso a caso, ultrapassar o salário do chefe do governo (€190 000 por ano) e o académico mais bem pago era o vice-diretor de um instituto interuniversitário, um russo de nascimento, com €337 000 anuais. (Previsivelmente, o sindicato dos docentes universitários irlandeses opõe-se dizendo que pagar salários altos a um pequeno número de professores não é a solução.) Portugal é provavelmente o único país do mundo onde todos os estudantes do ensino superior têm em todas as suas aulas docentes doutorados com obrigação de fazerem investigação. Será possível manter esta situação e manter uma grelha salarial única e bastante apertada?
Todos os países desenvolvidos têm algum modelo de diferenciação, em geral muito forte, da sua oferta de ensino superior. Espanha tem os ciclos curtos em escolas secundárias como via de continuação para os estudantes que terminam o secundário pela via profissional. A França mantém as suas Grandes Écoles de elite com entrada muito seletiva e os ciclos curtos também seletivos, enquanto as universidades são em geral obrigadas a aceitar todos os candidatos com o efeito de que o insucesso e abandono são altíssimos nos primeiros anos. O Governo Macron está a tentar corrigir situação. O sistema científico está tradicionalmente ligado às universidades e a algumas poucas Grandes Écoles. Os candidatos às Grandes Écoles ficam 2 anos em alguns liceus onde preparam o concurso de entrada na escola de elite e, nesse liceu, não há atividade de investigação. Na Holanda, 2/3 dos estudantes estão no equivalente ao nosso ensino politécnico com raros docentes doutorados e quase sem investigação. No Reino Unido, os ciclos curtos estão fora das universidades e as universidades têm condições de funcionamento e de reconhecimento social muito diferente. O sistema britânico é um caso único na Europa de forte reconhecimento pelos estudantes e pelos empregadores das grandes diferenças de seletividade, conteúdo e ambição académica e da missão das diferentes universidades. Com a reclassificação, em 1994, dos antigos politécnicos em universidades, a concorrência entre elas aumentou, reforçando ainda mais a perceção da sua diferenciação. Nos Estados Unidos, 2/3 dos estudantes estão em Community Colleges, em cursos de 2 anos, alguns preparando a sua transferência para cursos universitários de 4 anos, sem qualquer investigação e muitas universidades assumem também não ter investigação.
Até quando deveremos manter a pretensão de um sistema binário que foi o sonho inicial de Veiga Simão e parecia consolidado no virar do milénio? Assistimos hoje a algumas cedências e poderá ser preferível assumir o seu fim para gerir mais eficazmente um sistema único que sirva melhor as necessidades dos portugueses. Não faz mais sentido pensar no ensino superior como se a única via fosse a velha licenciatura que era, não só única, mas também o primeiro e último ciclo de ensino superior. Note-se que os mestrados (à americana) forma criados em 1980 pelo ministro Vítor Crespo e que os doutoramentos só começaram a um ritmo significativo depois da adesão à então CEE, em 1985. A população estudantil que hoje procura o ensino superior é muito mais diversa. As funções que os graduados vão desempenhar na sociedade vão muito para além da administração pública e das velhas profissões liberais. As ofertas de ensino superior são hoje muito diferenciadas e todos os estados procuram acentuar e tornar mais transparentes e compreensíveis estas diferenças. A criação dos ciclos curtos de TeSP em 2014 estava nesta linha. Algum descrédito que aqui ou ali aflora em relação à licenciatura tem muito a ver com a quebra da expectativa de que o grau possa garantir a carta de alforria de outrora. Temos de manter e aumentar a diferenciação e a transparência da oferta, mas teremos de manter um sistema binário? Depois dos acidentes do percurso dos últimos anos, talvez seja mais eficaz redesenhar uma nova arquitetura institucional.
Várias medidas legislativas recentes contrariaram o desenvolvimento e a compreensão das diferenças entre o universitário e o politécnico:
A.     Adaptação ao Processo de Bolonha (2006)
B.     Revisão dos estatutos de carreira docente (2009)
C.     Proposta de restrição dos mestrados integrados (2018)
D.     Proposta de autorização do doutoramento em todo o ensino superior (2018)

A.     A restruturação dos graus académicos feita em 2006 para fazer a adaptação ao processo de Bolonha foi apressada e pouco refletida. A generalidade dos países fez as suas reformas de acordo com o que entenderam necessário, sem alterar o significado dos antigos graus académicos ou criando novas designações. Portugal seguiu o caminho fácil de promover o ciclo de 3 anos dos institutos politécnicos de bacharelato a licenciatura e reduzir as licenciaturas de longuíssima tradição universitária a 3 anos sem ser claro se tinham um objetivo terminal, profissionalizante (politécnico) ou se deviam manter o objetivo de continuar estudos por mais tempo conformando-se com a tradição universitária. Mais de dez anos depois não são ainda claros os objetivos de algumas licenciaturas universitárias. Para evitar essa dificuldade, inventou-se o Mestrado Integrado (MI) que garantia às grandes escolas de engenharia (e profissões universitárias mais tradicionais de Medicina, Arquitetura, Farmácia) a manutenção do modelo anterior. Como este MI só foi permitido às universidades e apenas quando a atividade de investigação fosse mais relevante, este transformou-se em etiqueta de prestígio. Os primeiros ciclos das mesmas áreas disciplinares assumiram inicialmente a designação de Ciências de Engenharia para obstar á confusão de que fossem tomadas como qualificação profissional. Mas, como estas designações não são muito atraentes para os jovens candidatos ao Concurso Nacional de Acesso, foram-se convertendo em Licenciaturas com uma designação profissional, mesmo quando não é esse o objetivo assumido. Tudo isto criou uma razoável confusão nas ordens profissionais cuja função de defesa do interesse público face ao exercício autónomo de uma profissão ficou ainda mais reduzida. No seio dos estudantes e até nos empregadores, a opacidade destes graus é total, o que resulta na desvalorização do diploma, fragilizando ainda mais os graduados de primeira geração que aspiravam a usar o título como cartão de entrada num novo meio social.
B.     A revisão dos estatutos de carreira docente de 2009 eliminou quase completamente as diferenças entre o universitário e o politécnico. Nas condições impostas para a abertura de concursos para que todos os lugares docentes passassem para doutorados numa meia dúzia de anos, o efeito previsto era a dispensa de uns 5000 docentes a tempo inteiro não doutorados (ou com doutoramentos obtidos sob a pressão de prazos curtos) e a sua substituição por jovens doutores graduados pelas universidades nos últimos anos e, já na altura, sem destino óbvio pelo desacerto entre os seus interesses e aspirações e as necessidades e propostas das empresas. Estes doutorados mais jovens e, em alguns casos, muito competitivos iriam levar para os institutos politécnicos uma cultura de investigação e uma aspiração a que estes adotassem a cultura das universidades de onde acabavam de sair. As alterações subsequentes deste estatuto, evitaram a saída da grande maioria dos docentes que tiveram um tempo mais longo para se doutorarem e ficaram com a sua vaga garantida sem concurso. Os doutorados mais jovens não tiveram a sua oportunidade e foram mantidos nas seis maiores universidades com pós-doutoramentos repetidos e alguns poucos contratos de trabalho temporário. O resultado relevante para esta discussão é que num período curto o número de docentes do ensino superior a competir por fundos para investigação terá subido uns 50% enquanto os milhares de pós-doutorados e contratados também procuravam a sua sorte. Nominalmente, ficamos com o sistema de ensino superior com as melhores qualificações formais do mundo. Não está feita a avaliação do impacto final desta requalificação muito rápida do seu pessoal sobre a cultura dos institutos politécnicos, nem no aspeto dos resultados da investigação nem nos objetivos do ensino ministrado. A quase única diferença entre as duas carreiras docentes é que no universitário o número máximo de horas semanais de docência é de 9 e no politécnico é de 12. Apesar desta diferença significativa, não há diferença entre o rácio discente: docente num e noutro subsistema (ficando em cerca de 15, tal como na média das universidades da OCDE ou da UE) o que aproxima muito os custos médios do pessoal docente por estudante num e noutro subsistema.
C.     A proposta de extinção dos mestrados integrados de engenharia poderá parecer a simples abolição de uma peculiaridade portuguesa, mas fará desaparecer uma das poucas características visíveis que distingue os dois subsistemas. E, mais importante, só num curso desenhado para 5 anos é que há disponibilidade para iniciar com disciplinas básicas de matemática, física, química ou biologia e para aceitar estas disciplinas a um alto nível de exigência. Em larga medida, esta formação básica é o pré-requisito para a entrada nos campos de aplicação especializados de cada engenharia. A norma em muito países é uma licenciatura focada na continuação de estudos seguida de um mestrado da especialidade. Parece normal que Portugal seguisse esta norma, mas não se vêm sinais disso. A alternativa é uma competição por candidatos anunciando uma licenciatura (no Concurso Nacional de Acesso) que pareça suficientemente atrativa pelo seu cariz profissionalizante. Não serão visíveis as diferenças para a oferta politécnica.
D.     A autorização da oferta de doutoramentos sujeita apenas à sua acreditação pela Agência A3ES não foi sugerido pelos peritos da OCDE que analisaram recentemente o nosso sistema de ensino superior, mas parece ser a opção do Governo. Haveria certamente espaço de melhoria na regulamentação dos doutoramentos, mas a concretização da proposta feita será o golpe final no sistema binário.

O sistema binário é a opção mais comum por facilitar a compreensão da enorme diversidade da oferta educativa hoje incluída no ensino superior. Um tipo único de instituições será uma originalidade que, sem outros cuidados, tornará o nosso ensino superior demasiado caro e demasiado mau. Em qualquer caso não servirá bem os portugueses. Urge repensar o sistema e construir um modelo que ultrapasse os erros cometidos no passado e as distrações do presente.
In: Observador, 13 de maio de 2018

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